A notícia da morte de Jules Bianchi entristeceu todo o mundo do esporte a motor, mas não se pode dizer que o tomou de surpresa. Desde o inusitado acidente do Grande Prêmio do Japão de 2014, em que o carro do jovem piloto francês aquaplanou sob forte chuva e colidiu com um guindaste que saíra para a caixa de brita de Suzuka para resgatar a Sauber de Adrian Sutil, sabia-se que as lesões cerebrais sofridas por Jules eram gravíssimas e que dificilmente ele sobreviveria.
É a segunda morte em dois anos de um piloto de F-1 que colide em circunstâncias estranhas com um veículo de manutenção parado ao lado da pista. Maria de Villota, também da Marussia, atingiu um caminhão num teste de desempenho em linha reta em 2012, perdeu um olho, recuperou-se aparentemente bem, escreveu uma autobiografia, e morreu um ano depois.
Algumas notícias da morte de Bianchi ignoraram o acidente da espanhola, e enfatizaram a primeira tragédia fatal com um piloto num Grande Prêmio desde Ayrton Senna e Roland Ratzenberger em Ímola, em 1994.
Aquele fim de semana do GP de San Marino, consensualmente lembrado como o mais sombrio da história da F-1, e que teve outros acidentes terríveis, como o de Barrichello no treino livre de sexta-feira, foi um divisor de águas para os investimentos em segurança no automobilismo, sobretudo porque uma das vítimas era a sua maior estrela do momento, que passou à condição de lenda do esporte ao morrer enquanto liderava uma corrida.
Desde então a F-1 melhorou muito a infraestrutura das pistas, as áreas de escape, as equipes de atendimento, a altura da proteção do cockpit, o material dos capacetes (o que salvou a vida de Massa em 2009), o sistema HANS que protege o pescoço nas desacelerações súbitas, a amarração que impede que as rodas se soltem como no acidente fatal de Henry Surtees na F-2 em 2009, a tal ponto que Raikkonen, em sua sinceridade costumeira, cometeu a infelicidade de dizer que a F-1 deveria ficar mais perigosa para continuar sendo atrativa.
O risco está e sempre estará na essência do esporte a motor, assim como em várias outras modalidades. Schumacher, o piloto mais bem sucedido da história, é hoje uma sombra do atleta que foi, em lenta recuperação, preservado pela família da curiosidade mórbida do público, depois de um acidente de esqui nos Alpes franceses em 2013. Nos últimos anos, fatalidades em outras categorias, como a MotoGP e a Indy, não nos deixaram esquecer desse fato.
A morte de Bianchi não será um divisor de águas como a de Senna e Ratzenberger em 1994, porque desde aquele fim-de-semana a Fórmula 1 passou a encarar o perigo, ao menos para o piloto, como algo que, mesmo inevitável, deve ser minimizado a todo custo.
Tanto que Bianchi e de Villota sofreram acidentes bizarros, envolvendo veículos de transporte, elementos estranhos à pista de corrida e que só devem ser deslocados em circunstâncias excepcionais, para nos lembrar que sempre há espaço para aprimoramento nos protocolos de segurança.
A redução dos riscos no automobilismo, no entanto, tem seus efeitos colaterais: ela encoraja os pilotos a explorarem ainda mais os limites da pista e do equipamento, em busca de melhor desempenho. É o que vem ocorrendo com os novos autódromos, cujas áreas de escape são de asfalto mais aderente e não de brita; é o que acontece quando as bandeiras amarelas são agitadas e os pilotos diminuem o ritmo apenas o mínimo necessário para evitar uma punição, mas sem, de fato, protegerem-se dos riscos que podem estar à frente, o que, aliás, foi um dos muitos fatores que contribuíram para o acidente de Bianchi.
O jovem piloto francês está recebendo justas homenagens, algumas compreensivelmente exageradas, exaltando-o como um futuro campeão que o destino nos impediu de testemunhar, quase um Gilles Villeneuve, mas é possível dizer, sem exagero, que nunca um 9º lugar na F-1 foi tão importante, tão celebrado ou tão heroico quanto o de Jules Bianchi no GP de Mônaco em 2014.
Dizem que contar a Historia é contar um fato passado à luz de outro, posterior ao primeiro, e que lhe confere significado. Ao receber a bandeira quadriculada em Monte Carlo, Bianchi fez história, marcando os primeiros e até hoje únicos pontos de uma das novas equipes que a F-1 recebeu em 2010; o seu trágico acidente impediu que ele visse os efeitos da sua conquista, já que o prêmio em dinheiro pelo 9º lugar no Mundial de Construtores, resultado daquela corrida, garantiu a sobrevivência da Marussia, aos trancos e barrancos, agora rebatizada como Manor; por fim, a sua morte cobriu aquele feito de uma triste ironia que acompanhará a sua antiga equipe enquanto ela resistir à crise financeira que aflige a Europa dentro e fora das pistas de corrida.
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